quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Visita escolar: um recurso do psicodiagnóstico interventivo infantil 1

Por Vanessa Maichin 2

É importante explicitar, inicialmente, que esse trabalho tem como objetivo principal refletir sobre a visita escolar, procedimento que faz parte do psicodiagnóstico infantil interventivo na abordagem fenomenológica.  
A visita escolar é um recurso que vai ao encontro dos fundamentos do psicodiagnóstico interventivo de base fenomenológico-existencial, uma vez que se propõe a compreender o cliente em seu mundo. No psicodiagnóstico interventivo, “a unidade de estudo... é o ser-no-mundo, o homem contextualizado, em relação com o ambiente e com aqueles que o cercam,  (...) psicólogo e cliente se envolvem, a partir de pontos de vista diferentes mas igualmente importantes, na tarefa de construir os sentidos da existência de um deles  - o cliente” 3

A visita escolar revela aspectos ao  psicólogo que, muitas vezes, não seriam revelados somente na sessão com a criança  ou com os pais. Alguns casos, mostram que algumas suspeitas do psicólogo em relação a uma determinada compreensão são confirmadas através dessa visita. Outros ainda, revelam que a visita à escola amplia a compreensão do psicólogo a respeito da criança e dos pais. Certamente, o profissional que adotar a prática da visita escolar terá tantas experiências quantas visitas realizadas, pois cada fenômeno é único, tendo em cada caso peculiaridades específicas que fazem com que cada um tenha sua própria singularidade.
 Através destes pressupostos torna-se possível compreender que o recurso da visita escolar se revela de forma única a cada novo processo de psicodiagnóstico, pois o ser humano é único. Desta forma, a cada cliente  aparece uma nova história e a cada visita escolar uma nova compreensão. Cada visita realizada tem um significado diferente dentro de cada processo de psicodiagnóstico, assim, não temos como delimitar normas e regras rígidas a serem seguidas nesta prática, pois não há um único caminho e nem um único significado. Podemos apenas apontar algumas especificidades desta visita que são comuns a todas e que se mostram importantes para sua compreensão. 
A família é a primeira referência na vida da criança. É com os pais e familiares que ela aprende a dar seus primeiros passos, a falar suas primeiras palavras, a se comportar de determinada maneira. É neste ambiente que a criança começa a se constituir. Mais tarde, em contato com novos grupos sociais, a criança se defronta com novas referências. 



A escola é um desses lugares onde a criança começa a confrontar aquilo que lhe foi ensinado pelos pais e responsáveis com aquilo que lhe é transmitido pelos professores e colegas. É neste espaço que suas referências são  questionadas, divididas, multiplicadas, somadas ou até mesmo subtraídas.  É neste novo grupo social, composto por diversas relações humanas, que uma nova rede de significados se constitui na vida da criança. Os professores, os alunos e demais profissionais que trabalham na escola aparecem na vida dela como novas referências em seu mundo existencial. 
Compreender a criança pelo prisma da escola é entender como ela entra em contato com estas referências. É focalizar as formas dela se colocar no mundo, pois “no momento que o jovem cruza o portão da escola, ocorre uma espécie de rito de passagem, ele passa a desempenhar um papel específico, diferente daquele que assume na família...” 4. Não é dizer que todas as crianças se apresentam de forma diferente no contexto escolar e sim que elas são seres de possibilidades que se mostram de formas diferentes dependendo do contexto em que se encontrem. Assim, a escola é um lugar revelador que permite compreender a criança por caminhos, muitas vezes, ainda desconhecidos pelos pais e pelo próprio psicólogo. 
Conhecer a escola e o que os professores têm a dizer sobre a criança é desvelar algumas formas dela se colocar no mundo, ou seja, como se relaciona com os outros, com o   ambiente e consigo própria. Através do que é contado pela professora é possível, pouco a pouco, compreender como a criança interage com os seus colegas; respeitando-os ou não, impondo a sua opinião ou compartilhando-a, ficando isolada, em grupos ou escolhendo somente um amiguinho. Como interage com o meio; liderando as atividades ou se mostrando passiva, criando ou reproduzindo brincadeiras, aceitando as perdas ou erros de forma tranqüila ou irritada, aprendendo os ensinamentos do professor de forma criativa ou somente reproduzindo-o. Como interage consigo própria; apresentando ansiedade, segurança, autoconfiança, inibição, dependência etc. Entender essas interações é compreender o significado que a criança dá ao seu ambiente escolar e como ela se permite experienciá-lo. Nesse sentido, a visita escolar, revela ao psicólogo uma compreensão sobre a criança em um aspecto muito importante de seu cotidiano. 
A escola é um cantinho presente no dia-a-dia da criança. É neste espaço, na sala de aula, na biblioteca, nos corredores, no pátio, no refeitório, que a criança brinca, corre, conversa, grita, briga, aprende, ensina, pinta, etc. É neste espaço de interlocução que a criança se sente (ou não) parte integrante de um grupo. Conhecer a escola é conhecer o espaço onde a criança passa grande parte de seu dia, é ampliar o nosso conhecimento sobre sua realidade existencial.
Não se trata de conhecer somente o espaço objetivo da escola, pois qualquer espaço ultrapassa sua simples concretude, mas de ir além e mergulhar neste ambiente como espaço de possibilidades. Ao adentrar em uma escola, com o propósito de ampliar a compreensão da criança, o psicólogo atenta, não só ao espaço objetivo da escola e ao que o professor tem a dizer, mas também às dimensões subjetivas e simbólicas contidas neste espaço, pois “é a experiência (...) ainda muda que se trata de levar à expressão pura de seu próprio sentido” 5
Espósito, em um trabalho sobre a dimensão simbólica da escola afirma que, “a instituição escolar não pode ser observada apenas pelas suas manifestações objetivas nem pela simples aparência” 6
Para ela, “ver a escola em sua intimidade, perscrutá-la atentivamente, apreendê-la nas suas manifestações, renunciando a encará-la como mera representação, implica tornar visível perspectivas de seu ser” 7

Espósito deve ser vista em sua condição ontológica, ou seja, um lugar que desvela “a posição que o homem ocupa no mundo”, um lugar onde pessoas estão “aí sendo, existindo” e mostrando as suas possibilidades. 8
Compreender a criança pelo prisma da escola é desvelá-la como um ser-aí, sendo e existindo consigo mesma, com os outros e com o mundo. Não apenas através do espaço objetivo e do discurso da professora mas, principalmente compreendendo as possibilidades que a criança revela neste lugar. 
 A escola é um espaço importante para compreender, não só a criança, mas também os pais. É neste espaço que eles se revelam presentes ou não nos trabalhos escolares, participativos ou não nas atividades que envolvem a sua presença. É neste espaço que, muitas vezes, os pais demonstram suas expectativas em relação aos filhos e o que esperam da instituição escolar. Assim, outro ponto importante a ser compreendido, no momento da visita escolar, é o olhar que o professor tem  em relação a eles. Pois, no psicodiagnóstico interventivo de base fenomenológico-existencial, a presença dos pais é fundamental durante todo o processo. São eles que, a partir de reflexões sobre suas vidas e sobre o relacionamento com seu filho, constituem juntamente com o psicólogo uma compreensão sobre a criança. Desta forma, no momento da visita escolar, saber como os profissionais da escola percebem os pais da criança, amplia de forma significativa a compreensão da dinâmica familiar. Essas percepções ajudam a delimitar as intervenções do psicólogo com os pais e o caminho dos atendimentos, após a visita escolar, ganham um novo rumo.
As percepções que a escola tem, tanto dos pais como da criança, são importantíssimas para a compreensão do psicólogo, pois é a partir das diversas percepções e significados - dos pais, da criança, do próprio psicólogo e também da escola -, que o psicoterapeuta constrói uma compreensão sobre a “trama existencial” 9 da criança em sua dinâmica familiar. Seguindo os ensinamentos de Merleau Ponty, estamos “condenados ao sentido pelo fato de estarmos no mundo”. É no laço das relações que “as perspectivas se confrontam, as percepções se confirmam, um sentido aparece” 10. 
Expressão utilizada pelo professor José Carlos Michelazzo, no dia 5 de janeiro de 2002, referindo-se as peculiaridades que constituem a vida de uma pessoa, no curso de formação em psicoterapia fenomenológicoexistencial no Centro de Psicoterapia Existencial, coordenado por Valdemar Augusto Angerami – Camon.  10
A percepção que um professor tem de uma criança e o significado que ele lhe atribui pode ser diferente da percepção e do significado dado a esta mesma criança por sua mãe. Embora o mundo seja o terreno comum a todos, os que estão presentes ocupam nele diferentes lugares, conseqüentemente, cada um vê o mundo através de lugares e perspectivas distintas. Assim, uma mesma criança pode ser compreendida pelo prisma dos pais, do psicólogo e dos profissionais da escola de diferentes maneiras. Isso não quer dizer que o olhar do psicólogo em relação à criança seja mais verdadeiro do que o dos pais. Ou ainda, que o olhar dos pais seja mais importante do que o olhar da criança sobre si mesma e o da escola mais fidedigno que os anteriormente citados. Trata-se de olhares diferentes, vistos por ângulos diversos e com significados distintos.
O recurso da visita escolar ganha uma importância significativa no processo de psicodiagnóstico pois se trata de um olhar que, além de trazer novos significados, transcende a visão cristalizadora que os pais têm da criança por estarem imersos na cotidianidade da vida. Parafraseando Dichtchekenian, a cotidianidade são os atos ou vivências naturais e mundanas, que, muitas vezes, encobrem o significado de uma consciência 11. Faz parte da condição humana ir vivendo de forma natural sem se questionar sobre o sentido de sua existência, contudo, se um problema inusitado aparece neste cotidiano, ocorre a quebra desta aturalidade e o que era considerado familiar passa a ser sentido como estranho e confuso. “...Quando uma pessoa recorre a um atendimento psicológico, já utilizou, sem sucesso, seus recursos e seu repertório de conhecimentos para resolver determinado impasse. Ao aceitar a proposta do psicólogo de passar por um psicodiagnóstico, esta pessoa demonstra que está buscando compreender atitudes suas e de outras pessoas (um filho, por exemplo) que não se enquadram no que considera normal ou adequado” 12. O psicólogo ao propor o recurso da visita escolar, no processo de psicodiagnóstico, pretende adentrar em  um espaço onde novas perspectivas de compreensão possam se abrir. Perspectivas que se mostram enriquecedoras por emergirem do próprio cotidiano da vida do cliente: a instituição escolar. Olhar para o cotidiano da criança e dos pais no contexto escolar é desvelar os significados presentes em cada especificidade deste lugar. É compreender como se dá a relação da criança com o professor, com os colegas e outros funcionários. É entender a relação do professor com a criança, com os pais e a abordagem de ensino adotado por este. É perceber a relação dos pais com a escola, com o professor e suas expectativas em relação ao filho e a própria instituição. É olhar para  o espaço físico e desvelar o seu espaço de interlocução.   Olhar para a escola da criança e considerá-la importante no processo de psicodiagnóstico é, antes de qualquer pressuposto, respeitá-la nesta prática que se propõe a compreender o cliente no seu mundo e a escola, por sua vez, faz parte do mundo da criança, além de ser um lugar que possibilita ao psicólogo e aos pais olhar para a criança por um prisma diferente.  Certa de que estes apontamentos não encerram nossa reflexão a respeito da visita escolar convido os leitores a  percorrerem seus próprios caminhos dentro desta prática chamada visita escolar, visando que novos questionamentos, novas possibilidades e novos significados sejam descobertos. 

Citações:
1 - Este texto foi retirado de alguns trechos da dissertação: “Visita Escolar. Um Recurso do Psicodiagnóstico Interventivo na Abordagem Fenomenológico-Existencial”. Dissertação de Mestrado, São Paulo: PUCSP, 2006.
2 - Vanessa Maichin. Mestre em Práticas Clínicas pela PUC-SP; Formação em Psicoterapia Fenomenológico-Existencial; CoAutora do livro “O Atendimento Infantil na Ótica Fenomenológico-Existencial”, Angerami, V.A. (org), Editora Thomson, São Paulo, 2003.

3 - CUPERTINO, C.M.B. “O psicodiagnóstico fenomenológico e os desencontros possíveis”. IN: “Psicodiagnóstico: Processo de Intervenção”. Ancona-Lopez, M. (org). São Paulo: editora Cortez, 1995. p. 138.
4 - SETUBAL, M.A.; FARIA, A.B.G.  “Escola, que lugar é esse?”. São Paulo, CENPEC, 001. p1.
5 - MERLEAU-PONTY, M. Op. cit. p. 12.
6 - ESPÓSITO, V.H.C. “A escola: os processos institucionais e os universos simbólicos”. Tese de Doutorado, São Paulo: PUCSP, 1991. p. 25.
7 - ESPÓSITO, V.H.C. Op. cit. p. 2
8  - Idem, Ibidem. p. 26/29.
9 - Expressão utilizada pelo professor José Carlos Michelazzo, no dia 5 de janeiro de 2002, referindo-se as peculiaridades que constituem a vida de uma pessoa, no curso de formação em psicoterapia fenomenológicoexistencial no Centro de Psicoterapia Existencial, coordenado por Valdemar Augusto Angerami – Camon. 
10 - MERLEAU-PONTY, M. Op. cit. p.1
11 - DICHTCHEKENIAN, M.F. “A Psicologia em Husserl. Um caminho para a psicologia transcendental”. IN:
FORGHIERI, Y.C. (org). “Fenomenologia e Psicologia”. São Paulo: Cortez, Autores Associados, 1984. p. 125.
12 - ANCONA-LOPEZ, S. “Psicodiagnóstico: processo de intervenção?”. IN: “Psicodiagnóstico: Processo de Intervenção”. Ancona-Lopez, M. (org). São Paulo: editora Cortez, 1995. p. 26/27.

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